Os Primeiros Dias de Brasília
Vi Brasília nascer e vou contar-lhes tudo o que sei sobre ela desde
seus primeiros passos.
Não me guia nenhum espírito de crítica a favor ou
contra qualquer teoria ou qualquer pessoa. Só quero fazer-lhes um
relato fiel dos dias que tive o privilégio de viver nesta terra de
esperança.
Aos meus leitores, saibam que esta é uma história
verídica e, se tem defeitos, saibam perdoá-los, porque ela
é humana... e nós também somos!
A Viagem
No futuro Distrito Federal era 12 de novembro de 1957. Aquele jipe
empoeirado já estava rodando havia um mês e doze dias para
alcançar sua meta.
Saiu de Buenos Aires numa ensolarada manhã de primavera
transportando um jovem casal, cuja única bagagem poderia ser
definida em apenas dois itens: otimismo e visão. O objetivo da
viagem era o de chegar a uma cidade ainda inexistente, porém
já concretizada em plantas e números: Brasília, que
seria a nova capital do Brasil em 21 de abril de 1960 na otimista
previsão do então Presidente JUSCELINO KUBITSCHEK.
A essa cidade de sonho se dirigia aquele jipe e na sua frente não
existiam obstáculos, pois ele ia guiado pela mesma vontade
inquebrantável com que se iria construir a Nova Capital.
E eis que depois de rodar 9.000 km. por todos os tipos de estradas, o jipe
ia assomando seu nariz à única estrada esburacada que
desembocaria no pequeno núcleo de casas aonde estavam instalando-se
os trabalhadores que chegavam, e o qual já tinha um nome:
"Núcleo Bandeirante"ou Cidade Livre.
A Chegada
Não era o primeiro veículo que ali chegava, mas sim o
primeiro que atravessava as fronteiras de um país irmão para
ali se dirigir.
A chegada foi triunfal, porém desoladora.....
Aquele imenso planalto e no meio essas casinhas de madeira todas
enfileiradas e cortadas por apenas duas ruas intransitáveis de
terra vermelha davam a impressão de algo muito diferente de tudo o
que se tinha visto até então.
Não era uma cidade. Nem mesmo um acampamento. Poderia se definir
melhor como um cenário de filme "far west", mas com
espírito organizado e de trabalho, onde o jipe substituía o
cavalo, o candango o "cowboy", e a ferramenta, o revólver
empunhado.
Num ponto qualquer deste cenário o jipe deteve sua marcha e o casal
mergulhou numa nova vida cujo roteiro seria imprevisível.
Não vou contar as dificuldades desse casal. Seus triunfos e
derrotas foram muitos; seus sonhos mais de uma vez acabaram em
decepções; seu trabalho foi árduo e sua
experiência gloriosa e inesquecível.
Talvez mais adiante, nestas páginas, eles surjam no anonimato e
revivam algumas das peripécias pelas quais passaram; mas a partir
daqui, como se identificaram perfeitamente com o ambiente que acabamos de
descrever, ficarão confundidos com esse grupo tão
heterogêneo nas pessoas e tão homogêneo nos ideais que
foram os verdadeiros pioneiros de Brasília.
Ficam pois, caracterizados em cada um deles na continuação
destas linhas.
As Primeiras Impressões
Como já havia
mencionado, o Núcleo Bandeirante tinha duas ruas: a Primeira
Avenida ou Avenida Central e a Segunda Avenida. A Avenida Central era a
de maior movimento, pois os jipes e caminhões trafegavam
incessantemente num vaivém sem fim que envolvia todas as casas e
pessoas numa densa nuvem vermelha. Ali não havia
diferenciação de cores; a cor era uma só: a cor da
poeira, símbolo de uma jornada de trabalho.
Em 1957, existiam no Núcleo Bandeirante e acampamentos de obras
adjacentes, 5.000 habitantes que, pela vida intensa de trabalho que
levavam e pela movimentação que davam a essas duas ruas,
pareciam ser 50.000 pessoas.
Todos circulavam freneticamente, e o faziam com pressa e
determinação; ninguém pensava em
ocupações que não se relacionassem com seus
trabalhos. A única coisa que chamava a atenção
naquelas ruas eram as raras figuras femininas vestidas simplesmente com
"blue jeans" ( denominação da época) e
botas. Este era o uniforme geral, não por imposição
de ninguém, mas sim por imperativo das circunstâncias.
Na Avenida Central haviam várias pensões, algumas das
quais se auto-denominavam "hotéis".
Um desses hotéis pertencia a um casal de italianos. Os quartos
eram tão diminutos que só cabiam duas camas com o
espaço suficiente para, entre elas, dar passagem a uma pessoa
muito magra.
As roupas podiam ficar em cima da cama e nas janelas, que não
eram outra coisa se não um simples basculante de madeira. Ficavam
a uma altura tão baixa que, durante o dia, caso uma pessoa
tivesse a má idéia de permanecer no quarto, ou ficava no
escuro ou se submetia a estar exposto aos olhares de todos os
transeuntes.
Entre os quartos havia uma divisão lateral de madeira que tinha a
altura necessária para proteger os hóspedes de olhares
indiscretos, mas que no entanto, não podia isolar a infinidade de
ruídos de todos os demais quartos. Ruídos estes que
não respeitavam horários.
Às 3 horas da madrugada um senhor datilografava na sua
máquina instalada na cama, que fazia às vezes de
escrivaninha. Um motorista de caminhão batia na parede do colega,
pois estava na hora de partir. Mais adiante uma criança chorava,
e o dono da pedreira já colocava o motor de seu jipe em marcha
(que fazia tremer todas as paredes do hotel), pois ainda tinha alguns
quilômetros para percorrer e ele mesmo tinha que ir abrindo a
estrada.
A Rotina Candanga
O banheiro do hotel era um só para todos. Tanto para homens como
para mulheres. O banho consistia em algumas baldeadas de água fria
atirada por cima do corpo. Certa vez chegou uma mulher grávida e
inocentemente perguntou se poderia arranjar um balde de água
quente, ao que a italiana, dona do hotel, respondeu: "toma banho
frio, isto lhe fará bem."
Essa situação durou pouco, pois logo foi inaugurado um hotel
bem melhor na Segunda Avenida, o qual, comparado aos que havia até
então, tomava as dimensões de um palácio. Se chamava
Hotel Santos Dumont. Tinha quartos maiores com janelas de vidro,
armário e pia em cada um. Para cada conjunto de 15 quartos havia um
banheiro para homens e um outro para mulheres. Tinha um restaurante, o que
já era uma grande coisa. O café matinal era servido
até às 7 h. da manhã e quem chegava depois dessa hora
ficava em jejum, pois não acharia nenhum lugar que lhe servisse o
precioso combustível para colocar o motor humano em marcha.
As imposições e restrições em Brasília
eram tão naturais que uniam as pessoas por vínculos de
solidariedade. E assim foi que logo se formou um grupo de amigos no hotel
"Santos Dumont", constituído pela "elite" dos
pioneiros. Eram pessoas das mais diversas origens, cujas nacionalidades
variavam da Áustria à Síria e do Japão ao
Canadá. Cada um tinha seu trabalho, seu passado e suas
recordações. A única coisa que todos tinham em comum
era um ideal pela frente: construir Brasília e vê-la
inaugurada como Capital da República.
Logo se formou neste grupo, que a cada dia ia aumentando, um ambiente de
grande camaradagem. Às vezes davam a impressão de serem
todos hóspedes em alguma casa de campo de um amigo que estava
passando férias no estrangeiro.
À noite, na hora do jantar, era o momento de reunião e ali
cada qual contava suas façanhas do dia. Prolongava-se, assim, o
jantar num animado bate-papo e por vezes surgiam algumas
discussões. Quase nunca brigas.
E claro, não faltavam palpites sobre o futuro da cidade e sempre
havia os que se mostravam apreensivos. Estes precisavam de uma
lição e geralmente acabavam aderindo ante a realidade dos
fatos.
À tarde, quando cada um voltava de suas tarefas, era a hora de
fazer fila para tomar banho de chuveiro. Era uma questão de honra
para qualquer pessoa que se prezasse regressar ao hotel coberta de poeira
dos pés à cabeça. No corredor, embrulhados em suas
respectivas toalhas, um construtor e seu amigo comerciante não
perdiam tempo. O primeiro pergunta:
- "Quantos m³ de areia você pode me entregar amanhã
na obra?"
O outro responde:
-"A quantidade não é problema, mas não posso
entregar na obra porque meu caminhão ficou atolado."
Eles esqueceram do preço, mas isto era secundário pois o
fator principal era o tempo.
Já numa mesa do restaurante, duas pessoas muito preocupadas,
procuravam solucionar outro caso:
quebrou uma peça do trator que só poderia ser encontrada em
Anápolis. Mas Anápolis ficava a 120 Km e a viagem tinha que
ser feita de avião. Às seis e meia da manhã
saía um da Vasp.
"Então vamos dormir para pegar esse avião e voltamos
à tarde com a peça comprada". E lá foram eles.
Os Pioneiros
Cada pessoa nova que
aparecia vinha cercada de mistério nos primeiros dias.
Ninguém podia saber o que ela ia fazer porque, geralmente, trazia
idéias novas para colocar em prática e, como tinha medo de
possíveis concorrentes, não iria, por certo,
revelá-las; ou então, estava simplesmente sondando o
ambiente mas jamais iria confessá-lo. Geralmente, depois que o
recém-chegado iniciava seu trabalho e ficava definido por um tipo
de atividade, juntava-se ao grupo e ninguém hesitava em
oferecer-lhe sua amizade.
Mais tarde, o restaurante do Hotel Santos Dumont passou às
mãos de Mário e Teresa Canevari, um casal de napolitanos
que, com bom gosto, soube fazer dele um cantinho agradável e o
ponto de reunião social dos pioneiros. De noite, tocavam-se
discos tipo "long play" e, quando haviam mulheres presentes,
até se dançava.
O Rotary Club de Brasília acabara de ser fundado e reunia-se no
restaurante todas as quintas-feiras, dando um toque de civilidade ao
hotelzinho de madeira.
A Cidade Livre
O Núcleo Bandeirante também se chamou "Cidade
Livre" devido ao fato de que os comerciantes ali instalados tinham
direito de uso do terreno sem custos pelo prazo de 3 anos e durante o
mesmo período, também não pagavam nenhum imposto.
Esse critério era adotado com a idéia de que, em 1960, o
Núcleo Bandeirante seria simplesmente extinto com a
inauguração de Brasília.
Era, portanto, o paraíso dos comerciantes, que vindos dos quatro
cantos do país aumentavam em grande escala dia após dia.
Havia pessoas das mais diversas origens; porém, a febre do ouro
estava latente em todos. Alguns sem sabê-lo, já eram
milionários em potencial e, muitos desses, hoje, nem precisam mais
trabalhar.
O comércio na Avenida Central era de uma atividade febril e
só fechava as portas a altas horas da noite.
Entre os comerciantes destacava-se um norte americano chamado George
Homer, um dos primeiros a chegar, e o primeiro a instalar uma loja de
material de construção, a HOMER & MARTIN. Homem de
grande coragem e visão, casado com uma enérgica e ativa
mulher de negócios, Janet, foi logo abrindo caminho até
figurar na primeira linha de fornecedores para as obras de
Brasília.
Este é um exemplo dos que, embora não esquecendo a si
proprios, contribuíram de fato com a construção da
Nova Capital.
Histórias Pitorescas
Para o sistema de propaganda havia um serviço que se utilizava de
alto-falantes dispostos em cada extremo da Avenida Central, e que
martirizava os ouvidos de todos os habitantes do Núcleo Bandeirante
das 7 hs. da manhã às 7 hs da noite. Era uma torrente de
anúncios intercalados por algumas músicas caboclas que
geralmente levavam dedicatórias como esta: - "de Maria das
Dores para seu namorado com todo carinho" -; ou então: -
"o Jesuíno dedica esta canção com amor e ternura
a sua querida mãe que deixou no Ceará." Às vezes
ouviam-se anúncios como: - "O motorista do caminhão
número tal avisa que partirá para o Piauí dentro de
duas horas. Quem estiver interessado que se dirija à
Estação Rodoviária."
Mas o ponto alto na técnica propagandística era sem
dúvida um rapaz chamado Jackson, cujo único capital era uma
bicicleta dotada de poderosa buzina. Jackson prestava serviços de
propaganda, cujos anúncios eram feitos gritando e gesticulando da
bicicleta, e se fazendo notar, chamando a atenção de todos
com suas constantes buzinadas.
O Jackson era criativo e também confeccionou várias placas
de propaganda das firmas que o contrataram, assumindo o compromisso de
tratar da manutenção das mesmas. Certo dia ocorreu uma forte
tempestade que derrubou todas as placas colocadas por Jackson, e quando
seus clientes foram procurá-lo, ele já havia desaparecido
para longe montado na sua bicicleta.
Havia também algumas agências de bancos construídas em
madeira, pois tudo na Cidade Livre tinha que ser feito em caráter
provisório.
O movimento desses bancos logo justificou a abertura de novas
agências, e foi-se formando a movimentadíssima zona
bancária. Uma pequena "Wall Street"de barracos de
madeira. O gerente do banco geralmente morava nos fundos da agência,
portanto se algum depositante precisasse fazer uma operação
fora do horário ou em dia de feriado era só bater à
porta que ele próprio iria atender, talvez de pijama, e com a
melhor boa vontade solucionava tudo o que estava ao seu alcance.
Lembranças
É
impressionante ver como o sacrifício comum une os seres
humanos, chegando ao ponto de facilitar as coisas uns aos outros de
uma maneira que seria impossível em condições
normais.
Porém, as ambições arrastam os homens com
correntes que os aprisionam. É a ânsia pelo poder, a
ânsia pela riqueza que, em maior ou menor grau, existia em cada
um deles.
E o que foi feito afinal desses generosos pioneiros? Os que
progrediram, salvo algumas exceções, ao tornarem-se
independentes, foram se dispersando e ficaram tão
irreconhecíveis, que eles próprios já esqueceram
do simples começo que deveria ser motivo de orgulho. Os outros,
mais equilibrados, lembram no silêncio das
recordações.......
Ano 1970 - Texto
atualizado em 2002 com imagens feitas pelo fotógrafo Ake Borglund
- Produção e Acervo de Mercedes Urquiza
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